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quarta-feira, 21 de agosto de 2013


O canto do quarto abrigava a velha estante. Nela, obras de consagrados autores repousavam tranquilamente esperando uma mãozinha. Estendia a minha, impulsionada por cores, formas, largura. Não conhecia todos aqueles nomes, mas alguns soavam tão bem. 

Vinícius. Como sabia falar de amor. Falava tocando. Eu o peguei, mas foi ele que me alcançou. Se poesia era isso, se reconhecer em algo escrito, também queria ser linha. Deixar o cotidiano rabiscar em mim.

Depois veio Leminski. Irônico. Preciso. Sucinto. Só sinto. Se poesia era isso, se era risco. Também desejava arriscar um novo jeito de escrever. De desafiar. Inventar meu jeito de transparecer. De ser. De me expor.

Escrevo porque abrigo coisas demais em mim. E a gente cresce, mas nosso espaço continua sempre curto. E a gente aquieta, mas nosso sossego quase sempre é breve.

Fernanda Gaona

Imagem: Doisneau

Os cílios alcançaram a parte debaixo dos olhos. Foram décimos de segundos. Aquele espaço de tempo que passa despercebido quando a gente pisca.

Pisquei.

Pisquei e já havia passado duas décadas. Tempo o suficiente pra passar do chão do quarto, onde me encontrava rodeada de diários, pro sofá-cama da minha sala - parcelado em suaves prestações.

Às vezes achava o filme exibido nesse período um tédio. Em outras aplaudia de pé todas as cenas.

Mereço Cannes.

Sim, mereço. Mereço porque vinte anos é pouco pra fazer tudo que se quer. Mereço roteiro adaptado - de certa forma faço jus àquilo que planejei. Sou coerente com as minhas vontades. E ainda sonho.

Sonho, porque se duas décadas não foi tempo o bastante pra ver se materializar todas as minhas ambições, foi tempo suficiente pra descobrir que planos não são estáticos. Pra aceitar que eles se movem com a mesma velocidade dos meus pés.

E como ando. Ando porque preciso pagar a prestação do sofá. Pagar pelos planos que abandonei. Preciso acertar as contas com os meus erros. Ainda preciso pagar alguns patos.

Continuar pagando pra ver.

Fernanda Gaona

Imagem: Pinterest


terça-feira, 23 de julho de 2013

Espere...

Você quer um amor. Uma paixão daquelas de tirar o fôlego e, ao mesmo tempo, acalmar o coração. Mas ela simplesmente não vem. Não aparece nem quando você está distraído, quem dirá quando está procurando. O amor não te acha, mesmo você segurando uma plaquinha "estou pronto", mesmo você gritando aos sete ventos que a sua hora chegou. 

Como seria bom se a gente pudesse escolher o momento. Apontar a pessoa e pronto: pode vir buscar seu amor novinho em folha, embrulhado pra presente. Será que realmente seria melhor? Se você está na turma "da plaquinha”, com certeza deve estar balançando a cabeça pra cima e pra baixo, freneticamente, nesse momento. Agora, se você já passou pro outro grupo, com certeza deve ter a mesma coisa que eu em mente: espere. 

Claro que se divertir é legal, longe de mim ser hipócrita com relação a isso. Mas por que "vestir" alguém que passou correndo pela sua vida com uma fantasia sua. Não insista, não vai caber. Quando o "seu número" chega, ele se encaixa sem esforço. Não vem ocupar nenhum espaço vago, vem inaugurar outros que você nem imaginava que existiam.

Não corra o risco de criar um amor pra satisfazer uma carência momentânea. Aquele ditadinho que "na falta da metade da laranja me contento com os limões" só vai azedar, ainda mais, a espera. Que o Cazuza me perdoe, mas amor inventado só funciona em música. Vida real pede coisas palpáveis. E, por mais inconstante que o ser humano possa ser, o amor só tem graça quando vem de graça. Quando acontece por livre e espontânea vontade.

Fernanda Gaona

Imagem: Johnny Robles


Ps1. Inspirado "na espera" de uma amiga
Ps2. Texto escrito ao som de Hey Jude

terça-feira, 25 de junho de 2013

num estalo


é infinitamente mais vagaroso do que aquele movimento de fricção dos dedos, mas às vezes parece mesmo que o tempo passa na velocidade de um estalo.

é começo de ano e quando vê já era natal. o despertador tocou, mas quando percebe anoiteceu.

assim seguem os dias: algumas vezes arrastados, na maior parte das vezes ninguém sente passar.

se o tempo é ágil ou se nós somos dispersos, não dá pra saber. mas se soubermos aproveitar esses minutos de lucidez que acontecem antes dos dedos se encostarem, os intervalos entre um estalo e outro terão valido a pena.

Fernanda Gaona


Ilustração: Yo Missmita 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

“O que você quer ser?”






Esperou ansiosamente a hora de crescer. Ouvia dos outros: “o que você quer ser?”, e já tinha a resposta na ponta da língua. Só faltava mesmo a tal hora chegar. Aquele momento em que você tem o controle da sua vida em mãos e aperta o play pra dar início a tudo aquilo que planejou. Fez o check em cada sonho, recapitulou um por um. Sabia de cor e salteado. De cabo a rabo. Nada poderia dar errado.


Era da turma dos ansiosos. Aquela galerinha que torce para o tempo parar passar. Perguntavam sua idade e a resposta começava sempre com sua palavra favorita: “vou”.

- Vou fazer 15.
- Vou fazer 20.

Estava sempre indo um pouco antes da hora. 

Mas de nada adiantou a pressa. Os anos passaram e o filme não seguiu o roteiro já escrito. Veio então a primeira cena diferente, o segundo take adaptado.

- Quem mudou o meu cenário?
- Essa história não é a minha.
- É?!?

Quando viu já estava no meio do caminho. Era meio da tarde. Ela meio confusa. Nenhum pensamento inteiro. Justo ela que odiava metades. Que era maníaca por preencher seus vazios. Que tinha TOC com horas vagas. Não sabia o que fazer com a lacuna deixada pelos projetos que não se cumpriram. Não tinha a menor ideia do que fazer com uma história construída pela rotina, não por seus desejos.

Sentia que era preciso se desprender do irreal para ter paz no palpável. E entender de uma vez por todas que nem sempre as vontades sobrevivem naquele famoso filme chamado realidade.

E concluir, antes que terminem a pergunta novamente. 

“O que você quer...?” 

...Me basta ser!


Fernanda Gaona

Imagem: Doisneau

terça-feira, 11 de junho de 2013

Aprendi a lidar







Não existe uma borracha para os dias. Desenhamos nossa história com caneta, no máximo, uma bic quatro cores - o que já foi escrito não pode ser apagado. Revivemos com carinho as boas lembranças, mas aquilo que incomoda, geralmente, tende a ser ignorado. Nosso emocional finge não haver nada ali, mas o racional cedo ou tarde aparece pra cobrar uma posição. Pra reivindicar cada coisa em seu devido lugar.


Na ausência do famoso “branquinho” pra vida, somos obrigados a conviver em harmonia com situações, lembranças, características. Passamos os dias tentando nos equilibrar na linha que separa o “feliz” do “podia ter dormido sem essa”. O “na mosca” do “teeeente outra vez”.

Até aí, tudo certo. Fica tudo lindo quando os sentimentos se apresentam nítidos diante dos nossos olhos, cada um exatamente no seu lugar. Difícil mesmo é quando aparecem os que não se encaixam. Aqueles que ainda não conseguimos acomodar dentro da gente.  

Todo mundo (sem exceção) algum dia, de alguma forma, precisou aprender a digerir algo que não sabia como. É um exercício complicado, mas essencial para o bem geral da nação. Da razão ao coração.  


Fernanda Gaona

Ilustração: Eiko Ojala

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O que te toca?



Parte I

Abro o livro na primeira página. Letras saltam pra dentro dos meus olhos.

#Parágrafo 1 - Interessante, o que vem depois?
#Parágrafo 2 - Jura que ele fez isso? Risos, muitos!

Quando vejo, lá se foi a primeira página. Quando percebo, lá fui eu com ele também. Entro no metrô planejando solucionar o impasse dos personagens. Já sentada me sinto vigiada por eles. Já era. Me pegou.

Parte II

Bresson, Doisneau, Salgado, e outros desconhecidos mil. Em que momento esse registro foi feito? Alguém me conta mais sobre essa fotografia? Preciso saber. PRE-CI-SO. Nada mais incrível do que viajar em cima de uma foto. Nada mais delicioso do que todas as nuances de cores, formas. Não tem jeito. Me pega. Muito.

Salvem os escapes que, mesmo por instantes, parecem feitos pra tirar a gente do sério. Tirar do eixo. Tirar daqui.

Fernanda Gaona